quarta-feira, 30 de maio de 2018

As aparências enganam. E como enganam!

Uma das coisas mais fantásticas da pesquisa qualitativa – a modalidade que se preocupa em aprofundar os “porquês” e os motivos que estão por trás dos eventos e dos comportamentos, e não com estatísticas e dados numéricos – é a possibilidade de se SURPREENDER durante o processo.

O ponto de partida e a matéria-prima fundamental de quem escolhe a pesquisa qualitativa como método de sondagem é a curiosidade e a vontade de ir mais além do que apenas conhecer, por exemplo, a porcentagem da ocorrência de compras online, o número de acessos num site, a preferência por marca X ou Y ou quantas viagens faz no período de 1 ano. A principal ferramenta de quem trabalha com pesquisa qualitativa são as perguntas, porque o o profissional está interessado no que é subjacente aos fenômenos pesquisados, está orientado para entender tudo aquilo que não se manifesta claramente ou fica encoberto por alguma razão. Observamos comportamentos e buscamos os motivos como, por exemplo, entender como as pessoas estruturam suas compras no domicílio ou como usam os produtos em sua rotina, buscamos identificar o que ainda é uma necessidade latente e o que elas querem que um produto ou serviço ofereça além do que já oferece ou, ainda, investigar como uma determinada mensagem publicitária impacta no indivíduo.

Obviamente há uma estruturação prévia, a definição dos objetivos de pesquisa, o delineamento das áreas de abordagem e a escolha das ferramentas e técnicas que serão usadas no campo com os sujeitos de pesquisa, mas não ficamos “engessados” num questionário estruturado previamente, nem em algoritmos. Temos um fator importantíssimo ao nosso favor para se chegar ao núcleo das motivações dos comportamentos: FLEXIBILIDADE. 

A história que conto a seguir é um exemplo de como a flexibilidade para redesenhar uma estratégia de pesquisa em tempo real e como a abertura para enxergar um fenômeno de diferentes ângulos são virtudes da pesquisa qualitativa.

O BMW do "Professor"

Ele chegou bem mais cedo que os demais participantes daquela pesquisa. Estacionou seu BMW do ano logo na entrada do espaço de eventos e deixou as chaves com o manobrista. Vestia um blazer elegante, óculos escuros e uma mala de couro estilosa que abrigava seu notebook, papéis e alguns livros. Sentou-se na recepção, pediu um expresso e começou a ler um livro sossegado, entretido e focado.

Meia hora depois, todos os oito convidados já haviam chegado. Estávamos quase entrando na sala para começar a discussão em grupo que tinha como objetivo compreender o perfil de proprietários de carros importados de luxo e suas relações com diferentes marcas e modelos. Eu estava acompanhando o grupo para a sala quando a recrutadora, a pessoa responsável por selecionar e convidar os participantes, me puxou de lado e disse:

- Aquele cara que chegou cedo não pode participar! O seu cliente deu uma olhada em todas as fichas dos participantes e disse que ele está fora do perfil! Ele tem pontuação de Classe B, não é Classe A como os outros. Ele mora no Centro de São Paulo e não nos bairros mais nobres, ele é professor universitário e não é empresário, nem profissional liberal como os outros. Olha aqui, disse apontando para a tabela do CRITÉRIO BRASIL DE CLASSIFICAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA, a casa dele tem só 2 banheiros! O "Professor" não tem micro-ondas, nem lava louças, nem freezer! O que levantou a pontuação dele foi a escolaridade.

Então, eu disse à ela:

- Mais ele tem um BMW do ano, quase zero KM! Eu gostaria de ouvir o que ele tem a dizer sobre esse carro, conhecer as experiências dele. Eu vou lá falar com ele e entender melhor a história antes de tomar qualquer decisão. Não quero perder a oportunidade de ouvi-lo porque ele tem exatamente a marca e o modelo de carro que estamos procurando.

Pedi que os outros participantes entrassem e se acomodassem na sala de pesquisa enquanto falava com o “Professor”. E ele me contou um pouco da sua história: ele era Mestre e Doutor em Física por uma conceituadíssima universidade americana e dava aulas por paixão pela docência. Fazia trabalhos de consultoria para empresas aeronáuticas no Brasil e no exterior, o que ele não havia mencionado no processo de recrutamento. Falava 5 idiomas e se disse uma pessoa simples, mas com alguns gostos peculiares. E o que se segue foi o que ele me disse:

- Sabe, eu não faço nenhuma questão de ter uma casa bonita, nem morar em bairros chiques. Tudo o que eu quero é ter um lugar para dormir e colocar minha biblioteca. Moro no apartamento que foi de meus pais, lá na Av São Luiz, no Centro e está bom para mim. Meu maior prazer na vida é viajar pelo mundo, ficar nos melhores hotéis, ir a bons restaurantes, me vestir bem e ter carros importados. Amo as marcas alemãs, são verdadeiras máquinas... É nisso que gasto meu dinheiro. E eu não cozinho em casa, não lavo roupas em casa, por isso não tenho esses eletrodomésticos que me perguntaram.

Insisti com o meu cliente para que mantivéssemos esse participante no grupo e foi uma decisão acertada, aquelas intuições que aparecem de uma hora para outra e se mostram boas conselheiras.

O grupo foi sensacional! Extremamente produtivo, proporcionou muitos insights interessantes e satisfez as expectativas de todos nós. O cliente ficou encantado com o conhecimento e as experiências que o “Professor” tinha com a sua marca de preferência e as demais concorrentes. Posso dizer, sem sombra de dúvida, que esse grupo foi um dos melhores que já conduzi sobre o tema.

Algumas lições importantes dessa história:


  1. Os critérios e classificações que usamos em pesquisa para segmentar e formar grupos por características semelhantes são importantes, mas não suficientes. Sempre que começamos um projeto de pesquisa qualitativa sugerimos aos nossos clientes o uso adicional de “questionários de estilo de vida” que preparamos cuidadosamente para entender melhor quem é aquela pessoa e quais são seus hábitos e preferências além de suas posses. Classificações e segmentações são importantes, mas se nos detivermos apenas a elas, corremos o risco de perder a oportunidade de conhecer histórias relevantes para empresas e suas marcas.
  2. Saber quantos banheiros ou geladeiras é uma informação que não é suficiente quando estamos buscando estudar, por exemplo, consumo de cultura, lazer ou bens de luxo. Uma pessoa pode ter muitos itens de posse, renda alta e ter um estilo de vida mais simples e sem arroubos, enquanto outras podem ter menos posses e ter histórias fantásticas para compartilhar.
  3. Flexibilidade é uma possibilidade no contexto da pesquisa qualitativa, desde que dentro de critérios metodológicos e uso do bom senso.