domingo, 2 de setembro de 2012

Contradições em Tempos de Abundância


A primeira vez que estive nos Estados Unidos me intrigou a alternância de anúncios na TV que apresentavam comidas atraentes, aquelas do tipo “fast food” difíceis de resistir, intercalados com antiácidos e diversos produtos para emagrecer – dietas, equipamentos para ginástica, cremes redutores de medidas etc.
Pareceu-me incoerente dizer para o telespectador: coma, coma, coma, emagreça, emagreça, emagreça. Mas aos poucos fui percebendo que não há incoerência, mas uma intenção programada que atende a lógica da sociedade de consumo: “consuma, consuma tudo o que puder e, de preferência, muito!”.
A partir daí comecei a colecionar o que tenho denominado “coletânea de contradições em tempos de abundância”. São inúmeros os exemplos, mas gostaria de concentrar a atenção no que vem ocorrendo no consumo de cursos de idiomas estrangeiros em nosso país.

Fale idiomas, todos em português
A quantidade de escolas de idiomas que encontro num simples trajeto entre minha casa e os locais que frequento chama a atenção. Conto pelo menos 6 escolas diferentes num raio de 5 km - todas elas de grandes redes do setor. Além dessas existem também as escolas de ensino fundamental e médio cujo currículo inclui variedade de idiomas - inglês, espanhol e ... mandarin. Sim, porque as crianças precisam se preparar para “um mercado de trabalho cada vez mais competitivo e globalizado”.
Ao mesmo tempo em que cresce o número de alunos matriculados em escolas de idiomas – O SENAC, por exemplo, diz ter triplicado a procura por cursos de idiomas em junho de 2012 em relação ao mesmo período do ano de 2011 (1), critica-se a falta de preparo de profissionais para se comunicar em outros idiomas, especialmente o inglês.  O post publicado no Portal Administrador.com (2) comenta um estudo online realizado em 2011 pela Consultoria Catho com 46 mil profissionais brasileiros onde apenas 11% destes afirmaram conseguir falar efetivamente em inglês, sem dificuldades. Converse informalmente com um headhunter e ele lhe dirá sobre as dificuldades de encontrar gestores com fluência em inglês, apesar de sermos o país recordista em escolas de inglês e são 200 marcas de escolas de idiomas e mais de 3.000 escolas de idiomas contabilizadas até 2009 (3).

Então chegamos ao seguinte paradoxo: quanto mais se consome (ou se simula consumir) cursos de idiomas, menos se entrega o resultado em termos de aprendizado efetivo de algum idioma.
Igualmente intrigante é a aparente falta de coerência entre o que demanda o mercado de trabalho e o que vem ocorrendo com as emissoras de TV por assinatura. A programação que antes nos era oferecida em inglês e outros idiomas com legendas em português agora é substituída por programas dublados e, na maioria das vezes, sem opção de escolha para os ouvirmos o áudio original com suporte de legendas.
Ou seja, pagamos para aprender idiomas que não conseguimos dominar integralmente e também não temos a oportunidade de treinar o ouvido quando vemos TV. Assistir TV, além de ser uma diversão relativamente barata e acessível é uma forma reconhecida de proporcionar aprendizado de idiomas e novas linguagens como aponta o estudo conduzido pelos professores Fallahkhair, Masthoff e Pemberton da University of Brigton, UK (4).

Consequência disso: um círculo vicioso, alunos de escolas de idiomas parecem estar procedendo como muitas das pessoas que começam a frequentar academias de ginástica – pagam os primeiros meses, frequentam algumas aulas e desistem do projeto.
Penso que muitos consumidores são impelidos a comprar cursos de idiomas por acreditarem que o mercado de trabalho retém profissionais com fluência em línguas estrangeiras (ainda mais às vésperas da Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil). Mas na prática, não se sentem motivados a empreender um projeto de longo prazo. Talvez porque não acreditem num retorno no investimento que estão fazendo, talvez porque, assim como as pessoas que começam uma dieta ou um programa de exercícios físicos, não querem sair da sua zona de conforto e se empenharem num projeto educacional cujo trajeto é usualmente longo, árduo e perene e que exige empenho e disciplina constante.

Um dos maiores desafios para captar e reter a atenção de um consumidor em determinado estímulo, seja uma marca, um produto (incluídos os cursos de idiomas) é desenvolver apelos persuasivos o suficiente para ajudar a transformar desejos efêmeros em comportamentos consistentes, considerando que vivemos imersos num mar de possibilidades de consumo e modismos que se alternam sem parar diante de necessidades sempre em busca de satisfação.

O que faz um bom pesquisador qualitativo

Esta é uma pergunta sobre a qual tenho refletido por muitos anos e a tenho debatido com colegas e alunos. É difícil falar com isenção de um tema com o qual estamos envolvidos e que, portanto, já desenvolvemos algumas idéias e conceitos derivados da experiência. Mas é justamente aí que mora o perigo. Não raro aquilo que chamamos de conhecimento prático é, de fato, envolvido em muita teoria. Bem, ao menos no sentido de uma teoria muito pessoal, cujas premissas não foram explicitadas e, assim, não podem ser testadas [1]. Vou tentar um caminho diferente para tentar evitar os perigos citados. Para tanto, vou relatar algumas histórias reais e atuais, obtidas por mim e por colegas de profissão e a partir delas vou enunciar alguns atributos, características e competências que um bom profissional de pesquisa qualitativa deve possuir.


Não existe pesquisa barata, somente pesquisa mal feita
Em um projeto de pesquisa envolvendo profissionais de vários países, inclusive do Brasil, em certo momento o coordenador da pesquisa, um inglês muito gentil e inteligente confidenciou ao profissional brasileiro que aquela era a segunda vez em um curto prazo que estava em solo tropical para realizar, pasmem, a mesma pesquisa. Pergunta inevitável: por quê? Bem, confidenciou o saxão: Da primeira vez foi um horror... um horror. O profissional brasileiro da primeira tentativa, não entendia nada de inglês, não conseguia compreender o sentido geral do projeto, nem mesmo depois do material ter sido traduzido para tupinambá, digo, português. Para piorar, sim pode piorar, as entrevistas em profundidade foram equívocos em cima de equívocos. O entrevistador não sabia interagir com os entrevistados, interrompia-os, perdia oportunidades para explorar e aprofundar pontos importantes. O resultado foi como antecipei, um desastre, ou como o inglês disse, "um horror".
Na segunda tentativa, com um profissional qualificado, experiente e, óbvio, mais caro, o resultado foi excelente. Não tem mágica, bons profissionais são mais bem pagos. Incrível, não?

Bons profissionais são éticos e têm visão de conjunto
Uma grande rede de varejo pretendia entender por que razão suas lojas desempenhavam tão abaixo do esperado num dado município do estado de São Paulo. Para tanto, contratou um grande instituto de pesquisa que propôs uma fase qualitativa e outra quantitativa. Até aí, tudo certo. Os resultados foram, nas palavras dos analistas do cliente: "inconclusivos". Contrataram outro instituto, menor e com profissionais mais especializados e qualificados. Porém, dadas as despesas anteriores, vejam só, o cliente só tinha orçamento para um estudo qualitativo. Mesmo não sendo o ideal, contava-se com os dados dos estudos já realizados. Aqueles inconclusivos. Já na fase de recrutamento, detectou-se uma anomalia incompreensível, por assim dizer. O cliente havia identificado 3 ou 4 principais concorrentes no município. Para nossa surpresa, já no recrutamento de participantes ficou evidente que havia um concorrente local, até então não percebido, que mirava diretamente as lojas do cliente. Esse player local tinha 5 lojas, novas e vistosas, instaladas nas áreas de influência primária das lojas do cliente.

Profissionais sérios não fazem um trabalho superdimensionado para faturar mais. Ao contrário, dimensionam o projeto de pesquisa segundo as necessidades concretas do cliente. Nem mais nem menos. Além disso, bons profissionais acompanham todo o processo, em todas as fases. No exemplo citado, o recrutamento revelou uma falha brutal do projeto anterior. Ainda assim, restava uma dúvida, como os gerentes das lojas do cliente não sabiam da existência desse novo concorrente? Esse “mistério” deixo com vocês, leitores.

Método não é um fim, mas um meio – o risco da ‘Metodolatria’ [2]
Conversando com um cliente durante os preparativos para o início de um projeto sobre decoração de ambientes e hábitos de compras desses produtos e serviços, o cliente compartilhou que eles haviam terminado de realizar um estudo “etnográfico”, ao menos ele assim o chamou. Então, curiosos, os pesquisadores perguntaram como foram os achados. A resposta foi um tanto decepcionante. Disse a cliente, que eles não haviam recebido um relatório ‘analítico’, porém mais ‘descritivo’. Perguntada sobre como aquelas informações seriam utilizadas no processo decisório. A cliente pensou e respondeu que, na verdade, o estudo não servia para tomar decisões. Então para quê? Ou ainda por quê? Porque os executivos – europeus – gostam de ver fotos das casas dos consumidores. Surpreendente! Isto sim é um problema de pesquisa bem definido.

Profissionais qualificados conhecem metodologia científica desde suas bases epistemológicas [3 e 4] e ontológicas [5]. Portanto, não alimentam preferências por esta ou aquela abordagem baseados em predileções pessoais e respostas emocionais. As diferentes abordagens de pesquisa qualitativa têm qualidades e limitações que lhes são intrínsecas. Escolher entre uma ou outra, não é a mesma coisa que perguntar para um torcedor fanático qual time ele prefere. Trata-se de tomar uma decisão baseado na consistência entre os objetivos e as características do objeto de pesquisa.

[1] Hitchcock, D. Enthymematic Arguments. Informal Logic, Vol 7(2-3), 1985.

[2] Stokes, D. Methodology Or ‘Methodolatry’?: An Evaluation Of Focus Groups And Depth Interviews.  Qualitative Market Research - An International Journal, Vol. 9 (2), 2006.

[3]Carey, S. & Smith, C. On understanding the nature of scientific knowledge. Educational psychologist, Vol. 28(3), 1993.

[4] Rudolph, J. L. Portraying Epistemology - School Science in Historical Context. Science Education, Vol. 87(1) 2002

[5] Smith, B. Objects and Their Environments - From Aristotle to Ecological Ontology, 2001