terça-feira, 22 de junho de 2010

Estudos multi-métodos - as armadilhas ocultas ao se misturar estudos qualitativos e quantitativos

Tem sido uma prática muito comum de pesquisa em geral e de mercado em particular mesclar estudos de natureza qualitativa e quantitativa de maneira a procurar a aproveitar “o que cada um teria de melhor” e, ao mesmo tempo, equilibrar as eventuais fraquezas de cada abordagem. Esse esquema de trabalho também denominado de triangulação de técnicas é defendido por muitos pesquisadores que vêem nele mais virtudes que obstáculos (1). Assim, um objeto ou tema sob investigação é estudado de modo mais “objetivo” mensurando variáveis antecedentes e conseqüentes, da mesma forma que uma fase qualitativa providenciaria o necessário entendimento das razões e a profundidade que somente se consegue através desse tipo de estudo.

Coerência de premissas metodológicas
Contudo, recentemente, estudos têm apontado as dificuldades trazidas pelas incompatibilidades de pressupostos que cada teoria de referência ou método de investigação inevitavelmente traz para para o contexto da pesquisa. Segundo os pesquisadores Chatterjee e Gelbman (2004)(2), quando um pesquisador investiga um determinado fenômeno, implicitamente, ele parte de um conjunto de premissas acerca das relações causais do mesmo. Algo como, quais as prováveis causas para a pobreza ou qual a relação entre idade e interesse por tecnologia e assim por diante. Como eles mesmos enfatizam, é necessário que tais premissas sejam enunciadas claramente para se evitar utilizar métodos de estudos incompatíveis com tais premissas. A questão é de coerência epistemológica(3). Sei que a questão é um pouco complexa para um blog, mas é importante que ao menos o tema seja conhecido pelos profissionais do ramo e pelos clientes.

Vamos a um exemplo: Suponhamos que se esteja conduzindo um estudo sobre as razões e motivos pelos quais um consumidor adquire um carro esportivo. Mais ainda, suponhamos que pesquisador e seu cliente tendam a considerar que nem todas as razões sejam conscientes, isto é, que as fantasias sexuais inconscientes desempenham um papel relevante, porém não assumido na decisão de escolha. Que método de pesquisa utilizar? Reparem que se está partindo da premissa que motivos inconscientes condicionam, ao menos em parte, a decisão.Assim, não será possível perguntar diretamente aos consumidores quais as razões de suas escolhas, mesmo porque, se inconscientes são alguns motivos o sujeito não terá como enunciá-los de modo claro e direto. Isso exclui o uso de questionários e entrevistas dirigidas. Mesmo entrevistas em profundidade terão de contar com o apoio de técnicas auxiliares (técnicas projetivas) para eliciar tais conteúdos inconscientes.

Por outro lado, consideremos que o mesmo cliente, agora em fase de renovação de um carro esportivo, realiza um estudo baseado na técnica da análise conjunta (Conjoint analysis) que é uma técnica muito utilizada para se avaliar quais componentes ou conjuntos deles são preferidos pelos consumidores na configuração do produto. Tal técnica pressupõe que o consumidor esteja consciente de todas a opções disponíveis no momento da escolha. As escolhas são, portanto, consideradas racionais e não levam em conta nenhum conteúdo emocional ou inconsciente.

O que é importante deixar claro é que as premissas contidas nos métodos e nas teorias que servem de base à uma pesquisa configuram o campo de pesquisa, ou seja, o consumidor do primeiro exemplo é dotado de desejos e fantasias inconscientes e não é o mesmo consumidor que faz escolhas racionais do segundo exemplo. Notem que, cada método concebe um consumidor diferente que habita um mundo com entidades e possibilidades diversas. Não se pode cometer o erro, aliás muito comum, de achar que em ambos exemplos o consumidor é o mesmo, considerando que mudaria apenas a abordagem. Ao mudar o método muda-se a concepção do sujeito, ou no caso, do consumidor. A questão envolve problemas de escolhas metodológicas e de consistência e coerência epistemológica.

“Na mão de macaco tudo vira prego"
Já os pesquisadores Lois Harris da University of Auckland e Gavin T. L. Brown do The Hong Kong Institute of Education (4) consideram que as dificuldades de se mesclar diferentes métodos de pesquisa advém de aspectos mais práticos. Os autores afirmam que em estudos multi-métodos a fase qualitativa tende a trabalhar com categorias e conceitos mais abertos e menos estruturados, o que é muito adequado em estudos exploratórios, pois permite o surgimento de fatos e opiniões não antecipados. Contudo, a pouca estruturação dos conceitos e categorias pode criar dificuldades para uma fase quantitativa subseqüente, uma vez que esta exige maior precisão e operacionalização das categorias a serem mensuradas. Se, para tentar contornar esse inconveniente, o pesquisador procurasse definir de modo mais “fechado” as categorias de estudo da fase qualitativa  para facilitar sua mensuração posterior, isso pode privar o estudo qualitativo de uma de suas melhores qualidades que é a abertura para o “não antecipado”, o imprevisto ou ainda o não normativo.

Do exposto acima fica mais claro que não basta misturar estudos qualitativos e quantitativos de modo aleatório para parecer mais “completo”, “moderno” ou “de tendência”... É necessário planejamento e conhecimentos que vão além do superficial acerca das premissas ontológicas e epistemológicas da metodologia de pesquisa. Definitivamente, em pesquisa vale a regra de que pouco conhecimento é pior do que nenhum, pois pode dar a falsa impressão de que se sabe o que fazer, o que nos remete ao macaco do subtítulo.

(1) Para maiores detalhes ver o número especial do Annals of Family Medicine 2:2-3 (2004) dedicado a discutir a aplicação de múltiplos métodos de pesquisa a um mesmo objeto. Para acessar clique aqui

(2) Chatterjee, A. & Gelbman, S. M. Triangulation Reconsidered: The Hazards of Multi-Method Research, Proceedings: Annual Meeting of the American Political Science Association September 2 - 5, 2004.

(3) Epistemologia - termo de origem grega que designa um ramo da filosofia que estuda a estrutura, os métodos de aquisição e a validade do conhecimento, motivo pelo qual também é tipicamente conhecida por filosofia do conhecimento.

(4) Harris, Lois R. & Brown, Gavin T.L. (2010). Mixing interview and questionnaire methods: Practical problems in aligning data . Practical Assessment, Research & Evaluation, 15(1).
Para acessar clique aqui

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